terça-feira, junho 10, 2003
Diarista
Na noite em que a vi pela primeira vez, estava largada no sofá, roncando baixinho
no meio das almofadas de um jeito que já tinha esquecido ser possível na intimidade do meu lar.
Tudo o que esperava ao me dar ao luxo de uma diarista era um pouco de companhia;
sem conversa, necessariamente, ou refeição a dois.
Mas ela era de uma delicadeza fria que me desequilibrou em poucos dias.
A atenção com que parecia ouvir minhas histórias de família,
apontar para minhas fotos em álbuns de viagem ou até mesmo aparecer
sem mais nem menos pela porta da lavanderia, com um copo de suco nas mãos,
acabou por me fazer começar a escapar do trabalho provisório em um parque de diversões
próximo para passar períodos inteiros espreitando-a fazer qualquer coisa em casa,
de andar descalça pelos corredores a lavar as mãos por horas na pia da cozinha.
E se ela se mostrava reservada, como se não soubesse de minha presença,
me encantava e constrangia ainda mais.
Quando perdi o controle definitivamente e decidi violá-la,
já que ela não poderia nem mesmo compreender a idéia de termos uma relação,
verifiquei, desolado, em seu catálogo de fabricação,
que tinha sido feita para a indústria e não possuiria,
jamais, qualquer orifício que não a boca: linda, internamente metálica e cortante.
Por Rafael Vogt Maia Rosa, 2001
Ilustraçâo: Andrew Loomis